Daniel Schvetz · “Flash & Flesh” (2023) [peça inspirada na foto falada “Contrato Firmado”]

Gravação ao vivo do Festival Música Viva 2023, 13 maio 2023, O’culto da Ajuda, Lisboa.
Encomenda: Miso Music Portugal; com financiamento da DGARTES / Ministério da Cultura. Apoio: Sond’Ar-te Electric Ensemble / Miso Studio.

A criação de uma nova obra musical tem, na busca e/ou concepção do seu título, na maioria das vezes, qualquer coisa de constrangedor, ainda mais quando se trata de música exclusivamente instrumental. Sabemos que, entre os períodos barroco e romântico, bastava indicar o género e, em muitos casos, a tonalidade: Sinfonia em Ré Maior, Sonata n.º 8, 3.º Concerto para Piano e Orquestra, Trio com Piano… e daí por diante; tudo abstracção pura. Só faltaria a indicação do compositor, pois a maioria dos grandes criadores de objectos musicais, dos que chamamos «grandes compositores», são os que possuem no seu catálogo obras indicadas com os géneros e/ou as tonalidades como elemento identificador (como o foram a missa, o motete, o madrigal, a caccia, em épocas e estilos precedentes).

No caso específico deste projecto, trata-se da evocação de episódios ocorridos nas guerras coloniais, em que Portugal teve uma participação significativa, como sabemos. Os centros nevrálgicos foram, neste caso, a Guiné, Angola e Moçambique, entre os anos de 61 e 74 do século XX, relatados na primeira pessoa por actores directos.

A guerra aparece-nos como uma sina da humanidade, desde os longínquos tempos pré-bíblicos — Alexandre, Ciro, Dario, Hitler e, lamentavelmente, milhares de eteceteras até ao dia de hoje, como sabemos. Podemos assegurar não ter havido um instante nos últimos 30 ou 40 séculos em que não houvesse homens a matar-se uns aos outros, com razão, sem razão (nunca há realmente razão).

Imaginei poder estar fora da Terra e observar três mil e tal anos em alguns minutos, ao longo e ao largo deste maltratado e malquerido planeta, anos em que nunca deixaria de haver um só instante sem o fogo, a faísca, a potentíssima luz de alguma bomba, explosão (à mistura com alguns vulcões em erupção), como verdadeiros flashes de breve duração, cada um deles, reflexo da cada guerra, incluindo, obviamente, as guerras coloniais que envolvem este projecto. Pergunto-me, qual seria a frequência de tais faíscas?

Todos os conflitos armados entre homens, também mulheres, crianças e idosos, implicam necessariamente (e lamentavelmente) morte, carnificina. Não obstante, e apesar de tudo, podemos e devemos resgatar elementos, acontecimentos e situações paralelas. Sabemos que muitos grandes artistas, actores, orquestras visitavam os soldados nos seus acampamentos para aliviar, em parte, o pesadelo dos seus duros presentes.

Não queria deixar de mencionar um livro do Prémio Nobel Mário Vargas Llosa, “Pantaleão e as Visitadoras”, sendo as «visitadoras» precisamente mulheres que eram contratadas para acompanhar e «aliviar» os soldados peruanos que passavam longos meses isolados de todo o contacto social nas altitudes andinas. Esta situação está em sintonia com o excerto que me foi encomendado tratar para converter num trio para violino, violoncelo e piano, formação instrumental com um passado altamente comprometedor e brilhante, com pérolas musicais desde Mozart a Beethoven, Brahms a Fauré, Schubert a Schumann, Ravel, entre muitos outros.

São duas as causas do segundo termo do título, «flesh», sendo a primeira de ordem puramente sonora e musical — além de haver uma «intra-história» de uma paixão com a vendedora da casa de fotografia Cinderella. Ambas as palavras, «flash» e «flesh, possuem sonoridade análoga; ambas são constituídas por uma só sílaba. Já a segunda das causas prende-se com a semântica do termo, que não tem tradução directa em português, referindo-se ao tecido que une o músculo e o osso, não deixando de ser carne, animalesca ou humana. Como sabemos, todo o conflito armado, toda a guerra gera morte, destruição, mas flesh também reflectiria, na poética desta obra, o que o ex-soldado nos relata de forma espontânea — a felicidade espiritual e, sem dúvida, carnal, que estas visitas muito especiais traziam aos soldados.

Procurei manter a sonoridade a as capacidades expressivas do trio com piano, orientando uma espécie de percurso sinuoso, fragmentado e coeso ao mesmo tempo, habitando estes produtos materiais de diversa índole, com mudanças ora subtis, ora violentas, de tonicidade e capacidade expressiva.

Ao longo da obra, vão surgindo orientações para os intérpretes, como indicadores ou sinalizações de rota: «Mistérios essenciais»; «Asymmetric & Random Syntony»; «… of sights, bodies and souls»; «A estabilidade do instável, inside whispering»; «Ouvem-se estranhas e longínquas percussões». Seguem-se várias outras às quais, à partida, só têm acesso os músicos, numa tentativa de criar associações subjectivas como contributo a uma interpretação tão comprometida com a temática quanto possível e pensável.

“Contrato Firmado” · Angola 1965-66 · fundo privado. Nucleo expositivo «fotos faladas» da exposição “A Guerra Guardada – Fotografias de Soldados Portugueses em Angola, Guiné e Moçambique (1961-74)”, com curadoria de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte. Para ouvir a gravação do relato de ex-combatente, por favor sigam a ligação: “Contrato Firmado”.